Os dois milhões de doses vindas da Índia para reforçar o estoque brasileiro de vacinas contra a covid-19 trazem com elas, sem dúvida, uma das poucas notícias positivas em relação à campanha de imunização recebidas nas últimas semanas. Não pela quantidade de doses recebidas. Esses dois milhões não passam de uma gota para um país que, para proteger toda sua população desse inimigo perigoso que é o coronavírus, precisaria de quase 400 milhões de doses.
A boa notícia é a demonstração de que, ao contrário do que vinha parecendo, o Brasil pode se relacionar com outros países de forma madura e ter suas necessidades atendidas de acordo com as possibilidades do parceiro comercial. Para um país que, desde o início da pandemia, cometeu uma sucessão de erros desnecessários, começar a acertar agora pode não ser suficiente para eliminar o atraso do esforço de imunização. Mas é, com certeza, uma demonstração de que tudo pode começar a andar desde que as autoridades passem a falar menos e trabalhar mais para proteger a vida da população.
Na prática, tudo o que o país dispõe até agora, além desses dois milhões de doses que vieram da Índia, são os 10,8 milhões de doses da China e estão sendo distribuídas pelo Instituto Butantan, de São Paulo.
De acordo com os protocolos que recomendam a aplicação de duas doses para se alcançar a imunização máxima possível, isso é suficiente para 5,4 milhões de pessoas, cerca de 2,5% da população.
Dessas vacinas, o Rio recebeu, neste primeiro momento, um total de 488 mil doses — suficientes, portanto, para imunizar 244 mil pessoas. Isso cobre todo o grupo prioritário no estado, que reúne pouco mais de 232 mil pessoas, entre profissionais da área de Saúde e os idosos mais expostos ao risco.
SENSO DE URGÊNCIA — A falta de vacina num país como o Brasil só se explica pelo excesso de burocracia e pela ausência de senso de urgência das autoridades. Um país que conta com duas das instituições científicas mais capacitadas para produzir imunizantes em todo o mundo, a Fundação Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, e o próprio Butantan, não poderia estar a essa altura diante do risco de ver zerado seu estoque de vacinas contra a covid-19.
O problema é que, no momento em que foi preciso dar a elas os recursos necessários e as condições de trabalho adequadas, o que se viu entre as autoridades foi um bate-boca sem sentido e a inércia diante de providências indispensáveis para se ter acesso às substâncias necessárias para a produção do imunizante. Se o governador de São Paulo, João Doria, não tivesse desafiado Brasília e decidido iniciar uma campanha de vacinação por conta própria, o Ministério da Saúde não teria acordado para o problema nem passado a tomar providências para acelerar o acesso às vacinas. Essa é a verdade, por mais incômoda que seja.
O problema é que, mesmo que passe a fazer tudo certo daqui por diante, nada se resolverá de uma hora para outra. Os produtores não estão atrasando a entrega da matéria-prima porque são insensíveis à aflição do povo brasileiro nem porque desejam se vingar das falas inadequadas de figuras graduadas do governo em relação à China. Agem assim porque trabalham com substâncias que, para gerar os efeitos esperados, precisam ser produzidas com zelo. Para ter acesso a elas neste momento em que o mundo inteiro está na fila, à espera de seu quinhão, a encomenda deveria ter sido feita e confirmada meses atrás.
ESFORÇO MUNDIAL — Por que o Brasil, mesmo dispondo de cientistas preparados como os da Fiocruz e do Butantan, não fez as encomendas na hora certa? Simples: isso não aconteceu porque, a despeito dos alertas feitos por eles, apenas no último dia 7 de janeiro (há pouco mais de duas semanas, portanto), começaram a cair as barreiras burocráticas que impediam a importação. Para isso, o governo baixou uma medida provisória que dispensa a licitação para a compra das vacinas e de seus princípios ativos. Também foi dispensada a exigência de autorização específica da Anvisa para que a encomenda pudesse ser feita.
Isso mesmo! Para ter agora os insumos que permitirão aos laboratórios nacionais produzir as doses que protegerão sua população de uma ameaça que já é conhecida há mais de um ano, as autoridades brasileiras deveriam ter agido meses atrás. Se o general Eduardo Pazuello, ao tomar posse no dia 16 de maio de 2020, tivesse começado a preparar o terreno para produção da vacina ao invés de se preocupar em comprar “toneladas” de hidroxicloroquina, talvez a produção brasileira já estivesse a todo vapor e não houvesse risco de escassez. Infelizmente, não foi o que aconteceu.
O mundo inteiro, inclusive o Brasil, está se mexendo e logo haverá doses suficientes para imunizar toda a população mundial. O problema não é o futuro, mas o presente. Todos querem ser vacinados logo e isso é fundamental para que a Economia volte a andar e as pessoas recuperem seus empregos e tenham renda. Neste momento, a atitude mais sensata é fazer o que deveria ter sido feito meses atrás: dar aos cientistas da Fiocruz e do Butantan o apoio de que precisam para trabalhar e torcer para que chegue logo a vez do Brasil receber seus insumos. É hora de ter humildade e de esperar que falhas semelhantes não venham a ser cometidas daqui por diante.