A história prova que não se deve — como fez o ditador Stálin ao desdenhar da falta de poderio militar do pontífice — subestimar a força do chefe da Igreja Católica
Enquanto o mundo, na semana passada, parava para se despedir do papa Francisco — morto na manhã da última segunda-feira, no Vaticano, aos 88 anos — muita gente voltava as atenções para o nome de seu possível sucessor. E se punha a especular sobre a capacidade que o próximo ocupante do trono de Pedro terá para conduzir um pontificado tão marcante e profícuo quanto foi o desse jesuíta argentino que, com determinação e leveza, imprimiu sua marca na Igreja Católica pelos últimos 12 anos.
Substituir Francisco não será tarefa fácil. Desde que sucedeu a Bento XVI, em 2013, ele voltou os olhos para além da Santa Sé ao mesmo tempo em que tocava em feridas internas que haviam se tornado incômodas demais para permanecerem ignoradas pela Igreja. E, além disso, foi capaz de defender os excluídos do mundo sem que seu discurso parecesse meramente protocolar. Com esse tipo de atitude, Francisco conseguiu um feito que muitos davam como impossível: conter a evasão de fiéis e fazer o rebanho católico voltar a crescer ao redor do mundo.
Já em sua primeira viagem internacional como papa, Francisco deixou claro que seu pontificado não seria exercido do trono, mas das ruas. Apenas quatro meses depois de receber a mitra, ele esteve no Brasil, para participar da Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro. Ao invés de se refugiar no conforto de uma sacada e dali se dirigir ao povo, ele contrariou a segurança, se misturou ao povo e abençoou as pessoas que o aclamavam. Foi como se pretendesse, pela força do exemplo, deixar clara a prioridade de sua missão apostolar.
SÍMBOLOS DE PODER — Não foi só. Francisco soube, como poucos, lidar com os símbolos da autoridade papal. Não por valorizá-los, mas por mantê-los em seu devido lugar. Abdicou da cruz de ouro, dos sapatos e de todos os adereços vermelhos que sempre serviram para distinguir o Papa das pessoas comuns. Dispensou os aposentos suntuosos que seriam dele, por direito, no Palácio Apostólico. Preferiu ocupar um apartamento modesto na Casa de Santa Marta e seguir fazendo as refeições diárias no bandejão dos funcionários do Vaticano.
Partindo de qualquer outra autoridade, da Igreja ou de qualquer governo, gestos como esses correm sempre o risco de ser confundidos com a demagogia barata daqueles que se vendem como defensores dos desassistidos sem jamais dispensar o fausto do poder. Em Francisco, a renúncia ao luxo e a proximidade com os humildes eram manifestações legítimas das convicções de um homem que, desde que decidiu ser padre, se matriculou no seminário Jesuíta para nunca abandonar a linha de frente e estar sempre em contato com as pessoas desassistidas.
Os hábitos despojados que levou para o Vaticano — e que cultivava ainda no tempo em que, já cardeal, se locomovia de metrô por sua Buenos Aires natal — deixavam claro que, para ele, a conduta pessoal era mais importante do que as palavras. E que as atitudes, como indutoras das mudanças de que o mundo necessita, são muito mais eficazes do que os discursos inflamados, que prometem mundos e fundos, mas que não resistem ao primeiro confronto com a realidade.
Francisco cometeu erros e acertos. Fez escolhas polêmicas, aplaudidas por uns e questionadas por outros, e sempre se comprometeu com as causas com as quais se envolveu. Nunca, porém, prometeu resultados milagrosos. No campo geopolítico, teve um papel silencioso, porém ativo. Visitou países ignorados por outros líderes mundiais, desafiou o populismo e falou de paz onde todos preferiam falar de guerra. Ajudou a promover a reaproximação dos Estados Unidos com Cuba mas, mesmo tendo agido no limite de sua possibilidade, não teve forças para pôr fim aos principais conflitos armados de seu tempo.
ABUSADORES DE BATINA — Francisco morre em um mundo em ebulição, mas deixa uma semente viva. Seu funeral, ontem, foi uma celebração da sua vida. Mas, também, da coragem de um homem que ousou levar o Evangelho ao pé da letra, ao alto das favelas, aos campos de refugiados e às fronteiras físicas e morais da nossa época.
Por tudo o que fez, deixa uma Igreja mais transparente, mais próxima e mais desafiadora do que era antes de seu papado. Sem jamais abrir a boca para se queixar de qualquer herança que tenha recebido de seus antecessores, nem para culpá-los pelos problemas que precisou enfrentar, o papa chamou para si a responsabilidade por corrigir os erros que pareciam afastar a Igreja Católica do povo. E, mais do que isso, de lutar para cicatrizar feridas que faziam a instituição sangrar e perder prestígio. Muito mais do que abrir as portas e acolher nos templos os católicos LGBTQIA+ e do que defender o direito das pessoas divorciadas de receberem a comunhão — temas que, até seu pontificado, eram tratados pela Igreja como se não existissem —, Francisco encarou de frente uma chaga muito mais cruel e dolorosa: a da pedofilia no clero.
Foi o primeiro papa a romper com o hábito nefasto do Vaticano, que, antes dele, sempre acobertou os abusos sexuais cometidos por clérigos. Suas ações neste capítulo especialmente espinhoso incluíram a expulsão, em 2019, do cardeal norte-americano Theodore McCarrick — condenado por molestar crianças e adolescentes.
Além de punir casos que explodiram sob seu pontificado, Francisco tomou uma decisão que os especialistas consideram seu principal legado nesse campo. Também em 2019, ele criou uma comissão de especialistas, voltada para a proteção de crianças e adolescentes, além prever punições mais severas contra religiosos que cometessem ou acobertassem abusos.
E, desafiando os que usavam as tradições católicas como o tapete para baixo do qual se varrem as imundícies, eliminou a regra do “segredo pontifício”, utilizada para guardar segredo sobre as investigações dos casos de pedofilia e violência sexual. Isso permitiu que as autoridades civis tivessem acesso a documentos e outras evidências que pudessem sustentar processos contra os abusadores de batina.
ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA — Francisco foi, também, atento a outro tipo de conduta que, pelo tratamento que recebe de autoridades brasileiras, nem parece ser visto como crime por aqui: a corrupção. (Em tempo: a ordem de prisão expedida contra o ex-presidente Fernando Collor na quinta-feira passada parece ser a exceção que confirma essa regra). Uma de suas ações nesse campo teve como alvo Giovanni Angelo Becciu, que o próprio Francisco havia elevado a cardeal em 2018.
Becciu, que ocupou cargos importantíssimos na Secretaria de Estado do Vaticano, tinha acesso direto ao papa e foi acusado de tentar enganá-lo na tentativa de encobrir seus malfeitos. As apurações do fato comprovaram a má fé do cardeal, que praticou crimes de nepotismo, corrupção e cobrança de propina. E, pior ainda, fez uso indevido do Óbolo de São Pedro, fundo formado por esmolas dos fiéis, destinado a financiar obras sociais nos países mais pobres. Além disso, foi acusado de pôr a mão em € 139 milhões do Banco do Vaticano e de comprar um prédio em Londres em nome de parentes.
Becciu foi afastado de suas funções e condenado a cinco anos e meio de prisão (hoje, recorre em liberdade). Como é comum entre autoridades flagradas no ato do malfeito, renunciou antes de ser destituído de suas funções. Com a morte de Francisco, o cardeal afastado vem manifestando a intenção de participar do Conclave que escolherá o novo papa.
Se o Colégio de Cardeais liderado pelo camerlengo Kevin Joseph Farrell respeitar a decisão de Francisco e mantiver Becciu fora do Conclave é sinal de que as mudanças instituídas pelo papa têm chances de sobreviver ao próximo pontificado. Se, ao contrário, o cardeal corrupto for admitido entre os eleitores do sucessor de Francisco, é sinal de que as mudanças não passaram de ilusão. E de que as máculas das condutas irregulares continuarão pesando sobre a reputação de uma instituição milenar que, para cumprir seu papel, deveria se manter muito acima de qualquer suspeita.
QUADRILHAS SINDICAIS — Seja como for, e por mais branda que pareça a pena aplicada a Becciu, é inevitável comparar a postura de Francisco em relação à corrupção com a infinita complacência do Estado brasileiro diante desse tema. Enquanto o papa enfrentou as resistências internas e endureceu o jogo contra o cardeal corrupto, que traiu sua confiança e praticou atos que atingiram a credibilidade do Vaticano, a posição do Brasil em relação a essa prática é justamente a contrária.
Recentemente, decisões judiciais que impuseram penas a políticos, empresários e executivos de estatais que sujaram as mãos no maior escândalo de corrupção já apurado no país, vêm sendo anuladas — e até alguns que aparecem nos processos como réus confessos têm sido inocentados por ordem do Superior Tribunal Federal. E, para deixar evidente aos olhos do mundo que, entre nós, a corrupção é vista como algo sem importância, o governo brasileiro ainda acha correto dar guarida a quem embolsa dinheiro do povo em outros países.
Na semana passada, no mesmo dia em que seu marido foi condenado no Peru a 15 anos de prisão por embolsar propina da empreiteira Odebrecht — a mesma que liderou os escândalos do Brasil — Nadine Heredia, mulher do ex-presidente do país, Ollanta Humala, foi acolhida pela embaixada do Brasil em Lima. Menos de 48 horas depois, a criminosa chegou a Brasília a bordo de um avião da Força Aérea Brasileira, na condição de asilada política.
Esse foi apenas mais um na lista de escândalos recentes. Na semana passada, enquanto o corpo de Francisco era velado em Roma, a sociedade brasileira recebia — entre indignada e impotente — a notícia de um desvio de pelo menos R$ 6,3 bilhões em recursos de aposentados. Quadrilhas travestidas de “sindicatos” forjavam a adesões de segurados a programas que tiravam um pouquinho daqui, outro pouquinho de lá e, no final, geravam uma bolada enorme. A fraude, que começou em R$ 6,3, já ultrapassou os R$ 8 bilhões — dinheiro que, no final das contas, ajudava a engordar os bolsos dos corruptos.
No calor do escândalo e diante da perplexidade geral com o volume alcançado pelo desvio de recursos, teve início a velha, desgastada, cansativa e oportunista discussão sobre a responsabilidade pelos delitos. Os partidários do atual governo argumentam, como sempre fazem em relação a tudo o que há de errado, que os desvios teriam começado no governo anterior — e que nada disso estaria acontecendo se Jair Bolsonaro não tivesse um dia ocupado a Presidência da República. A oposição, como também não poderia deixar de ser, aponta o dedo na direção do atual governo e tenta imputar ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a responsabilidade por mais um escândalo.
A verdade, porém, é que, mais do que desse ou daquele governo, a responsabilidade por mais esse escândalo é do Estado brasileiro e de seu descaso com tudo o que diga respeito ao cidadão. Qualquer trabalhador brasileiro, tão logo que se aposenta pelo INSS, passa a ser importunado por telefonemas de golpistas que oferecem não só a adesão a essas entidades picaretas que estão sendo denunciadas como, também, empréstimos consignados que, no final das contas, se revelam fraudulentos.
Os espertalhões têm acesso aos dados pessoais dos segurados, que deveriam estar sob proteção do órgão público e que chegam ao conhecimento dos bandidos porque algum comparsa, do lado de dentro da máquina pública, os passa adiante. Sendo assim — e por mais que a medida tenha sido justificável — a demissão do ex-presidente, Alessandro Stefanutto, e de outros dirigentes do INSS não resolverá o problema. Aliás, uma eventual demissão do ministro da Previdência Carlos Luppi — que sabia do escândalo, mas nada fez para coibi-lo — pode até servir de exemplo, mas também não será a solução. As frestas que permitem esse tipo de prática seguirão abertas para os corruptos e assim permanecerão até o dia em que o Estado deixe de trabalhar apenas para seu próprio benefício e passe a cumprir com seriedade seu papel de trabalhar para o cidadão.
IMAGEM E SEMELHANÇA — Seja como for, grandes mudanças como essa jamais acontecem da noite para o dia e só se concretizam a partir do momento em que os valores que motivam a transformação se mostram sólidos o bastante para se transferir de um governo para o outro. E essa transferência só é feita quando apoiada sobre a razão que justifica a existência das instituições públicas — ou seja, o bem estar do povo — e não sobre as conveniências dos ocupantes dos cargos, como sempre acontece no Brasil.
É por esse motivo que, voltando a falar da Igreja Católica, o mundo agora volta os olhos para a escolha do sucessor e torce para que o novo Pontífice dê continuidade às mudanças iniciadas, mas não concluídas, por Francisco. Assim que a morte do papa foi anunciada, teve início um debate em torno do perfil de seu sucessor. Seja quem for, é certo que o escolhido se tornará, da noite para o dia, uma das pessoas mais importantes e poderosas do mundo.
Isso mesmo: poderosas. No passado, o ditador soviético ousou desdenhar do poder do Papa ao questionar diante do então primeiro-ministro da França, Pierre Laval, a falta de força militar da Igreja. “Quantas divisões tem o papa?”, quis saber. Ditadores, como Stálin, não entendem que existe uma força que vai muito além das armas e que, como aconteceu no caso de Francisco, pode ser usada com maestria para influenciar o destino do mundo. A pergunta é: quem será o próximo a exercer esse poder?
Alguns entendem que, pelo fato de a maioria dos eleitores terem se tornado cardeais no pontificado de Francisco, a tendência é a de que o escolhido seja alguém à sua imagem e semelhança. Outros acreditam, ao contrário, no favoritismo dos grupos tradicionalistas, que resistem no interior da Igreja e veem os avanços introduzidos pelo Papa como um sinal de retrocesso do próprio poder. Ninguém sabe! Os Conclaves são imprevisíveis e, neles, os cardeais se orientam por motivações que nem sempre são cristalinas no momento em que se trancam na Capela Sistina para decidir qual entre eles será o novo papa.
Os mesmíssimos cardeais que, em 1978, escolheram o cardeal Albino Luciani, patriarca de Veneza, para suceder a Paulo VI com o nome de João Paulo I, se viram, pouco mais de um mês depois, diante da necessidade de escolherem um novo papa. Vítima de infarto, João Paulo I morreu com apenas 33 dias no trono de Pedro. Para seu lugar foi escolhido o polonês Karol Wojtyla, arcebispo de Cracóvia.
Não poderia haver dois perfis mais diferentes do que o de Lucciani e de Wojtyla. O primeiro era praticamente uma extensão de Paulo VI e provavelmente teria dado continuidade às reformas que vinham sendo conduzidas pela Santa Sé desde João XXIII. O outro, era um ativista inquieto, que rodou o mundo em nome da fé e passou para a história como um dos catalisadores que apressaram a queda do Muro de Berlim. Ou seja, o mesmo grupo de cardeais escolheu, num brevíssimo espaço de tempo, dois nomes completamente diferentes para conduzi-los.
Que o exemplo de Francisco oriente os cardeais de agora e os ajude a escolher um nome à altura do desafio que o aguarda.