A despeito da situação de Bolsonaro, Brasil e EUA têm convergências demais para insistir num contencioso comercial que gera prejuízo para os dois países
Com as atenções totalmente voltadas para as cenas finais do julgamento de Jair Bolsonaro, que terminou na semana passada com a condenação do ex-presidente a 27 anos e três meses de prisão, o país não deu a devida atenção a certos absurdos que acontecem nesses últimos dias. Com os olhos fixos no plenário da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, ninguém parece ter se dado conta, por exemplo, de que a solução para o contencioso comercial, diplomático e geopolítico com os Estados Unidos hoje parece mais distante do que parecia há cerca de duas semanas.
Sim. Todos os caminhos tentados até agora, ao invés de avançar, parecem ter jogado uma ducha de água fria sobre as possibilidades de entendimento. O que aconteceu para aumentar a dificuldade? Nada que não estivesse previsto no roteiro. É evidente que, no ambiente tenso que se formou em torno da questão das tarifas de 50% impostas pelos Estados Unidos aos produtos comprados do Brasil, o resultado do julgamento de Bolsonaro e de seus auxiliares aumenta as dificuldades de entendimento. Afinal, o presidente Donald Trump e seus auxiliares mais próximos não se cansam de acusar o Estado brasileiro de promover uma “caça às bruxas” que tem o ex-presidente como alvo principal.
A história de Bolsonaro ainda está sendo escrita e apostar que o veredito da semana passada encerra o assunto é um pouco precipitado. E, no que diz respeito ao contencioso comercial entre os dois países, é bom evitar a impressão de que o problema entre o Brasil e os Estados Unidos começa e termina na condenação de Bolsonaro. Por tudo que tem sido dito pelos diplomatas americanos, não se deve, é claro, ignorar o peso que as afinidades ideológicas e a simpatia pessoal de Trump pelo ex-presidente tem nas desavenças entre os dois governos. Mas seria no mínimo ingênuo imaginar que está aí a única ou até mesmo a principal razão das punições comerciais aplicadas pelos Estados Unidos ao Brasil.
Uma visão ampliada do cenário mostra que a situação de Bolsonaro, por mais mencionada que seja entre as críticas recorrentes da Casa Branca ao governo brasileiro, pode ser considerada secundária na lista dos motivos que levaram Trump a impor as sanções que vêm dificultando o acesso de produtos brasileiros ao maior mercado do mundo. Há fatores muito mais relevantes e sensíveis. Entre eles, os que resultam das posturas, das escolhas ideológicas e até mesmo das críticas e provocações desnecessárias que a diplomacia brasileira já fazia aos Estados Unidos mesmo antes da volta de Trump à Casa Branca, em janeiro deste ano.
O problema está justamente aí: o Palácio do Planalto insiste em tratar o tarifaço como se tudo não passasse de um impasse que pode ser contornado a qualquer momento. E não aceita, em hipótese alguma, por um limite nos movimentos de aproximação que faz na direção da China e nas críticas que faz ao papel dos Estados Unidos na geopolítica global. Os Estados Unidos, por sua vez, também têm sua parcela de responsabilidade nessa história, ao enxergar qualquer movimento do Brasil em busca de novos mercados para seus produtos como uma ameaça a seus interesses.
Mas há alguns pontos incômodos que precisam ser postos na balança até para estabelecer os limites do debate. A potência americana gostaria que o Brasil revisse seus pontos de vista e renunciasse à ideia de criação de uma moeda alternativa ao dólar nas transações internacionais. Que pusesse um limite na influência crescente da China sobre sua economia. Que não tratasse a ditadura iraniana com tanta reverência e que reduzisse as hostilidades que demonstra em relação a Israel. Que não se mostrasse tão simpático às bandeiras antiamericanas e se reaproximasse dos velhos parceiros ocidentais. Enfim, que o Brasil voltasse a agir como um aliado.
BOM SENSO — Onde Bolsonaro entra nessa história? Bem… Entre todas as queixas que o governo americano faz ao Brasil, o tratamento ao ex-presidente é a única reclamação que pode ser feita exclusivamente ao Brasil, sem que outros países também sejam envolvidos. Enquanto a tensão fica concentrada no tratamento a Bolsonaro, outros países não têm por que se envolver nesse debate. Faz sentido?
Claro que faz. Mas, seja como for, os dois países teriam muito a ganhar se as armas fossem ensarilhadas, a bandeira branca hasteada e todos os pontos fossem colocados na mesa — até para que — é bom insistir neste ponto — ficassem claros os limites das divergências e os pontos de entendimento mais prováveis. Ou, se isso não for possível, que pelo menos houvesse um pouco mais de bom senso, sobretudo da parte do Brasil que, dos dois, é o que tem mais a perder com essa pendenga.
Sem entrar no mérito de eventuais exageros retóricos dos quais tanto as autoridades dos Estados Unidos quanto as brasileiras abusam ao se referirem umas às outras, seria positivo que houvesse um pouco mais de comedimento em declarações que têm o poder de inflamar os ânimos ao invés de arrefecê-los. Isso não significa baixar a cabeça nem abrir mão da soberania. Significa, apenas, buscar uma solução negociada para o impasse —uma postura que sempre foi a marca da diplomacia brasileira. Mas que, no atual momento, por falta de habilidade ou por apego exagerado a questões de natureza ideológica, tem se mostrado uma possibilidade cada vez mais remota.
O certo é que o Brasil já tem problemas suficientes em seu caminho e nada ganha com a insistência na tecla do confronto permanente com a potência que, além de ser seu segundo maior parceiro comercial, é responsável pelos maiores investimentos estrangeiros na economia nacional. De acordo com os dados da Câmara Americana de Comércio para o Brasil (Amcham), as mais de 4.500 empresas de origem americana que operam no Brasil geram mais de 3,2 milhões de empregos. Criar problemas para esse pessoal, como parece óbvio, não traz qualquer vantagem para o país.
Sendo assim, o Brasil ganharia muito se o governo, ao invés de alimentar o confronto, adotasse uma postura capaz de distensionar as relações com os Estados Unidos. Outro ponto que ajudaria na construção do diálogo entre os dois seria evitar a companhia dos aliados esquerdistas que, ao invés de tentar ajudar a resolver a situação, sempre dão a impressão de querer ver o circo pegar fogo.
Infelizmente, a todo instante surge um aliado disposto a empurrar o Brasil ainda mais para o centro da confusão. Na semana passada, esse papel coube ao presidente da Colômbia, Gustavo Petro. Considerado o primeiro presidente de esquerda da história do país que tem uma das democracias mais sólidas da América Latina, Petro é um ex-integrante de uma facção narcoterrorista já desativada e conhecida como M-19. Derrotado, o grupo depôs as armas em 1989 e se reorganizou como partido político com o nome de Aliança Democrática.
O episódio da semana passada merece ser visto com detalhes — mesmo porque, muita gente parece não ter dado a devida importância à cena que se passou em Manaus na terça-feira, durante uma cerimônia que tinha um significado especial para o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A intenção do governo era mostrar ao mundo que, ao contrário das críticas que recebe em relação a esse assunto delicado, o governo brasileiro tem, sim, uma política rigorosa de combate ao tráfico de drogas.
ATIVIDADES CRIMINOSAS — Para deixar clara a posição do Brasil, o governo resolveu dar destaque à inauguração de uma espécie de agência que começou a ser planejada muito antes dos desentendimentos com Donald Trump terem chegado ao ponto em que chegaram. Trata-se do Centro de Cooperação Policial Internacional (CCPI). O projeto prevê a implantação de um núcleo destinado a compartilhar informações, desenvolver ações de inteligência e planejar e executar operações destinadas a combater o tráfico na Amazônia.
Para dar destaque a essa iniciativa (que, de fato, é da mais alta importância), o governo resolveu, na última hora, transformar a inauguração do CCPI num evento internacional. Para isso, além de convocar integrantes graduados do governo brasileiro, convidou autoridades dos países vizinhos para dar mais peso à festa. Além de Petro, a única autoridade estrangeira a comparecer ao evento foi a vice-presidente do Equador, Maria Jose Pinto.
Se o CCPI se consolidar como um articulador de ações de combate ao tráfico, o Brasil terá dado um passo importante para mudar a imagem que hoje o mostra aos olhos do mundo como um território seguro para esses criminosos. O papel do Centro será o de somar e coordenar os esforços das polícias federais do Brasil e dos outros países amazônicos, em conjunto com os órgãos de segurança dos nove estados da chamada Amazônia Legal, no combate às organizações narcoterroristas. Essas organizações, como se sabe, utilizam a maior floresta tropical do mundo como o abrigo para suas atividades criminosas.
Em seu discurso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou clara a disposição de seu governo de endurecer o combate às organizações internacionais que comandam o tráfico de drogas na Amazônia. “O crime organizado que se prepare, porque a Justiça vai derrotá-lo”, disse o presidente.
LIBERA GERAL! — Contrariando a opinião do anfitrião, o ex-terrorista Petro criticou o combate ao tráfico e defendeu a liberação ampla, geral e irrestrita das drogas como forma — veja só! — de reduzir a violência. E, também, de salvar a floresta amazônica. Mesmo tendo sido eleito para chefiar um Estado que, poucas décadas atrás, quase foi levado à lona por organizações narcoterroristas, e que ainda hoje guarda as sequelas dos atentados que sofreu no tempo em que os cartéis locais dominavam o comércio internacional de drogas, Petro tem o desplante de fechar os olhos para os danos que esse tipo de organização causa ao mundo.
Segundo o colombiano, “é preciso discutir a legalização (das drogas) como forma de salvar a Amazônia”. Para ele, liberar o plantio, a produção, o comércio e o consumo das drogas ajudaria a salvar a floresta! E ainda traria outros benefícios.
Essa proposta sem pé nem cabeça, obviamente, não faz o menor sentido. Mas, como se não fosse suficiente dizer que a produção da cocaína manteria a floresta de pé, Petro foi além. Disse que a cocaína — da qual o seu país ainda é o maior produtor do mundo —, ao invés de representar uma ameaça, ajuda a salvar vidas. Isso porque o fentanil — o opioide que tem atraído cada vez mais usuários nos Estados Unidos e na Europa — causa muito mais estragos e tem um efeito muito mais letal do que o velho pó branco que fez a fortuna e a má fama de Pablo Escobar e dos criminosos dos cartéis de Medellín e de Cali.
Para piorar, Petro ainda teve o desplante de criticar a operação militar dos Estados Unidos que, dias antes da inauguração do CCPI, havia destruído com um disparo cirúrgico um barco venezuelano que singrava o mar do Caribe abarrotado de drogas e com pelo menos onze traficantes a bordo. Dirigindo-se a seu anfitrião, ele afirmou: “Estou dizendo, presidente Lula, caiu um míssil sobre uma lancha civil venezuelana, ou de Trinidad e Tobago, ainda não está claro, mas houve mortos, pessoas civis sem armas. Eles estavam levando cocaína? Não sabemos. Foram alvejados nas águas de Trinidad e Tobago. Isso é um assassinato”, disse Petro.
Pois é… Ainda bem que o governo brasileiro, embora possa e deva aumentar suas ações no combate ao narcoterrorismo, não comunga das ideias de Petro. Na quinta-feira passada, dois caças Super Tucanos, da Força Aérea Brasileira, em voo de vigilância sobre a Amazônia, interceptaram um bimotor Beechcraft Baron, de matrícula brasileira, que invadiu sem autorização o espaço aéreo nacional, vindo da Venezuela.
Advertido com disparos de metralhadora, o piloto não atendeu à ordem de pousar e, na tentativa de fugir, fez um pouso forçado no lago da hidrelétrica de Balbina, no Rio Uatumã, no nordeste do estado do Amazonas. Na sequência, uma equipe da Polícia Federal, transportada por helicóptero, foi até o local da queda e encontrou 380 quilos de skunk, uma espécie de maconha muito mais poderosa do que a normalmente encontrada nas bocas de fumo do Brasil — e que, normalmente, é destinada ao mercado europeu.
Operações como essa são muito mais comuns do que se imagina. De 2020 para cá, mais de três mil aeronaves carregadas com toneladas e toneladas de drogas foram interceptadas pela FAB e postas fora de operação. Algumas foram alvejadas pelos caças. Os números são significativos. De acordo com os números da Força Aérea, houve 984 interceptações em 2020. Em 2021 foram 1147. Foram 435 em 2022; 404 em 2023 e 412 em 2024.
A conclusão óbvia diante desses números é a de que, nesse ponto especialmente sensível, a postura do governo brasileiro está mais para a do governo americano do que para a de Petro. Talvez esteja aí, uma boa oportunidade para se iniciar um diálogo que exponha as afinidades entre os dois países. E, na sequência, tanto Brasília quanto Washington se deem conta de que há tantos interesses comuns a serem explorados que nada justifica as desavenças. Quem sabe, assim, o diálogo não volta a surgir?